segunda-feira, 15 de julho de 2013

O mito de Er

O mito de Er é uma história que Platão conta no livro A República, livro X, de 614b a 621b. Trata-se de um relato, transmitido oralmente, de alguém que retornou do Hades. No mito de Er, o essencial é que fossem quais fossem as injustiças cometidas e as pessoas prejudicadas, as almas injustas pagavam a pena de quanto houvessem feito em vida, a fim de purificarem a alma. Uma tal escatologia desvela um logos cósmico, fundamentalmente moral, na ordem de uma teleologia vinculativa para o humano. Platão, discípulo de Sócrates, dizia que o poder da virtude era tal que teria repercussões para além da própria e limitada vida de um individuo, ou seja, depois da morte. É assim que retoma o tema da imortalidade e relata um mito, figura literária muito usada na Grécia antiga. Este mito é vulgarmente conhecido como O Purgatório, pois representa, para alguns interpretadores, um nível intermédio entre o Inferno e o Céu. O Mito de Er deve ser lido em permanente intertextualidade com os demais mitos e/ou contos platónicos, sobretudo com a Alegoria da Caverna.A linguagem mitológica, em Platão, absorve a um tempo uma importância escatológica e teleológica (e até mesmo teológica na medida em que requer uma determinada concepção da divindade). Preponderantemente religiosa, a mensagem de cada mito platónico apresenta-se sobre a forma de uma moral que interessa retirar e interiorizar por cada um, de modo a se compreender o sentido de ser homem e o fim próprio de um tal ser. O fim para que Platão usa o mito evidencia-se quando da apresentação do mito da mátria/pátria (414c-415c, 468e, 547a-c). Isto é, a linguagem mitológica é uma outra forma, implícita e não totalmente literal, de exprimir a mensagem platónica.Em A República, tal como no Fédon e no Fedro, o mito vem desvelar o sentido da vida humana, religar vida e destino que cada alma imortal seguirá depois da sua passagem pela terra.Chegando ao ponto em que demonstrou que as riquezas, as honrarias ou o poder em si pouco valem para a felicidade terrena, Platão usa o Mito de Er para, à semelhança do que fez no Fédon e no Górgias, mostrar que a virtude e a justiça são também condição para a felicidade supraterrena. Platão prorroga n'A República que, psicologicamente, o homem justo e temperado é sempre o mais feliz e que, o tirano, governado pelos desejos e pela ambição desmedida, é o mais infeliz, vivendo no receio permanente. Demonstrou também que, paradoxalmente, aquele que sabe verdadeiramente qual é a vida mais aprazível é o filósofo. Além disto, demonstrou-nos que os prazeres reais são aqueles que à razão vêm da sua contemplação da Verdade. Até aqui, contudo, a avaliação parece dar-se tendo em conta a verdadeira felicidade, livre de tormentos, mas na terra. Contudo, a dignidade da alma apresenta-se como correlato duma finalidade real – transcendente. A própria consideração da condição humana parece exigir o transcendente, uma realidade máxima. A vida humana revela precariedade e reduzida dimensão – mas tal apenas em comparação com o Ser e a eternidade.Em determinados textos, Platão abandona a argumentação dialéctica e recorre à narrativa mítica para exprimir idéias de difícil acesso. Este recurso permite uma abordagem não demonstrativa a temas escatológicos já demonstrados. Na forma do mito, Platão vai além das potencialidades do discurso racional e permite-se expor teorias cosmológicas – tal é o caso do próprio Mito de Er. Os mitos platónicos são principalmente escatológicos (o do Górgias, o do Fédon, o de Er n'A República , o do Fedro). Tratam da salvação do homem, neste e no outro mundo. A alta consideração da felicidade do homem a partir do sentido da vida humana faz jus às exigências intelectuais que cada um, enquanto ser pensante que se projecta, faz inevitavelmente num ou noutro momento de sua vida. O período que a vida humana abarca é pequeno para um ser responsável e moralmente (pre)ocupado. O nosso ser, a nossa natureza projecta-se num além, sempre num mais além possível. Os mitos platónicos projectam do além a luz que deve iluminar a nossa conduta, a nossa vida, o nosso mundo aberto a partir do fim (telos). Platão é ocidental relativamente à interpretação do tempo: o futuro está à nossa frente, desvelando, orientando a nossa conduta para um desígnio que não é um qualquer, mas uma determinada concepção da humanidade. O Ocidental é isso, um abrir-se ao mundo mas para que ele caiba na nossa abertura, satisfazendo os nossos projectos, ou dito de outra forma, a chave para abrir o mundo é o nosso projecto. Nos seus mitos, aquele a quem Cornford chamou pai do Cristianismo, mistura imaginação artística e seriedade religiosa. Molda o mundo de acordo com os seus moldes. Força o mundo a adaptar-se à sua razão numa demanda à justiça, numa demanda ao bem, numa demanda ao homem. Apercebendo-se do perigo da entrega do futuro do Homem aos homens, ele cria arquétipos incriados, sinais, modelos. Satisfazendo as exigências racionais daquele ser que viria a ser chamado ser vivo racional, ele faz do mundo de obstáculos um Cosmo cuja lei visa corrigir a incorrigibilidade dos critérios individualistas que destroem indivíduos, famílias, Estados. São um último reforço à tentativa de restaurar a paz interior, vencendo o individualismo na sua própria casa, oferecendo-lhe a visão de um juiz que exige ao individualista que seja altruísta se quer ver seu egoísmo saciado na verdadeira felicidade. O Mito platónico mostra a falsidade de todas as convenções quando não está por detrás delas algo de sério: a honra nada é, se quem a pretende ostentar não for honrado! A dignidade verdadeira não é um título, um carimbo, uma imagem, mas um ser que existe na dimensão da realidade. É o homem honrado que tem honra, não é o facto de se elogiar um homem chamando-lhe honrado que faz dele um homem que participa da honra. O mito cumpre assim a sua tarefa pedagógica, moralizante, contra as velhas crenças, atacando aqueles que fingem ser o que não são, dando esperança aos que são e ainda não sabem ensinando-lhes que na realidade são. Zenão diria que somos deuses, mas Platão deu-nos deuses que cuidam de nós. O seu intuito foi religar o Homem com o Absoluto.Platão revela nos seus mitos influência pitagórica e oriental. Os seus motivos, desde a reencarnação ao julgamento divino, desde a purificação da alma (se bem que Platão desconsidere os ritos em nome da purificação interior) à crença na sua imortalidade, desde a sua concepção kármica da existência terrestre à importância dada à meditação e contemplação – os seus motivos são naturalmente de matriz oriental, provavelmente mediante o contacto com os pitagóricos, o que não obvia a inegável criatividade e o poderio manifestados quer nos seus mitos, quer na sua obra em geral. O seu pensamento revela ainda influências de matriz órfica. Os mitos de Orfeu têm uma origem antiga, mesmo para Platão e relativamente à estrutura do Panteão helénico da época. O Mito de Er teve um papel crucial na fixação duma escatologia com castigos e recompensas de acordo com a conduta moral do indivíduo. Cícero tem mesmo, na obra De Republica, um trecho chamado Sonho de Cipião que constitui uma réplica do mito platónico.

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