sábado, 18 de maio de 2013

Eumeswil ou a última fronteira da liberdade

Ernst Jünger (1895-1998) é uma das figuras mais controversas da literatura e do pensamento alemão do século XX. Aos dezoito anos, foge de casa, para se juntar à Legião Estrangeira. Trazido de regresso a casa pelo seu pai, aos dezanove anos, torna-se oficial de infantaria, até partir para os campos de batalha, na I Guerra Mundial. Foi agraciado, várias vezes, com a Medalha de Mérito, na Alemanha, o mais alto galardão para a bravura. Após o fim da guerra escreveu várias obras acerca das suas experiências em batalha, nas quais glorifica o combatente como uma nova elite. Tornou-se um, assim, um “conservador revolucionário”, teve alguma actividade nos movimentos nacionalistas alemães e foi convidado por Adolf Hitler (que admirava os seus livros de guerra) para ingressar no movimento Nacional Socialista. Jünger recusou. Quando o Nacional Socialismo alcançou o poder, afastou-se da actividade política e conservou uma atitude de “emigrante interno”. Em 1939 escreveu, talvez a sua maior obra, “On Marble Cliffs”, uma história alegórica sobre o triunfo da barbárie. O partido do poder, alarmado com o sucesso da obra, suprimiu-a. A Segunda Guerra Mundial leva-o, de novo, ao exército, desta vez, com a patente de capitão. Tomou parte da Invasão da França, ganhou mais uma Cruz de bronze e ocupou o resto do tempo como oficial da companhia, na Paris ocupada. Com efeito, ele não fez parte do grupo que tentou assassinar Hitler, em 1944, mas mantinha relações de amizade com alguns dos conspiradores. Por esse facto foi afastado do exército. Quando a Alemanha sucumbiu ao poder dos aliados e foi derrotada, Jünger, foi considerado uma figura suspeita pelos Britânicos, enquanto vencedores ocupantes, e os seus livros foram banidos. Contudo, continuou a escrever, até que um tribunal o considerou ilibado de ter pertencido ao partido nacional socialista. Com nova permissão para publicar, Junger, produziu uma quantidade considerável de novelas, ensaios e artigos. Aos oitenta e cinco anos escreveu uma das suas maiores obras: Eumeswill.
Datado de 1977, Eumeswill é um romance cuja narrativa é colocada num mundo não datado, pós-apocaliptico, algo próximo do Marrocos dos dias de hoje, depois de o governo mundial se ter dividido em cidades estado. O romancista alemão apresenta-nos um universo digressivo, distópico e fantástico, retratando a vida de Manuel Venator, um historiador, habitante da cidade-estado Eumeswill, o qual possui um trabalho em part-time, no bar nocturno, dirigido pelo tirano de Eumeswil, o Condor. Venator racionaliza a sua subserviência, em relação ao ditador, pensando-se como um “anarca”, um homem que não se liga nem ao estado nem à sociedade. O tema chave da novela é a figura do anarca, o livre e individualista pensador que vive sossegada e desapaixonadamente, consigo próprio, mas não com a sociedade ou o mundo. É neste conflito entre a lei e a liberdade que, Ernst Jünger, desenha a figura do anarca: aquele que afirma a sua liberdade, não pela ou contra a lei, mas apesar da lei. Qualquer que seja a lei. A figura do sujeito que emerge deste livro é, pois, uma afirmação da intimidade do eu, como o último e único reduto de liberdade. O conceito do anarca é desenvolvido implícita e explicitamente, ao longo do romance, através das reflexões e acções de Manuel Venator. Diferentemente do anarquista, que se dedica a lutar contra a autoridade, o anarca “joga o seu próprio jogo”, dentro da estrutura das regras estabelecidas. Por isso, mostra-se indiferente quanto, à sempre circunstancial, organização do estado: não será neste, ou contra este, que o indivíduo se afirma, será nas suas margens, na impenetrabilidade de uma reserva sem concessões. Como Jünger refere, nesta sua obra, o anarca é a contraparte positiva do anarquista: «O anarca, que não reconhece nenhum governo, mas que também não se deixa levar, como o anarquista, em devaneios paradisíacos, goza por isso mesmo de perspectivas neutras de observação. O historiador que nele existe vê entrar os homens e as forças na arena como um membro do júri. O tempo corrói qualquer potentado, e os bons com mais prontidão ainda». Venator e o anarca, podem ser, assim, considerados como o produto da reflexão autobiográfica do autor sobre si mesmo, com alusões a Max Stirner. Várias páginas de Eumeswill são dedicadas a Stirner, o que cria uma ambivalência entre a personalidade do autor e a do filósofo. Se o cinismo consciente de Ernst Jünger, possa ser lido como uma tentativa de reconstruir, literariamente, o seu próprio percurso biográfico, ele é sobretudo manifestação de uma desconfiança, quanto aos modelos de história herdados da modernidade. Todas as formas de organização política e cultural, no romance, não são mais do que ecos de um muito gasto tecido histórico. Nenhuma ordem pública se constrói, sem condicionar a acção individual. Neste desgastado tecido cultural, a reserva interior do protagonista (historiador e barman do tirano de serviço) constitui a única forma de consciência que não cede, nem à ilusão dos ideais, nem à desilusão da decadência. Quando não procura o conforto sexual com a sua aluna Ingrid, ou com a prostituta que vive à beira-mar Latifah, Venator, usa uma “máquina do tempo” para repassar eventos históricos e conjurar imagens realistas de anarquistas famosos. Entretanto Ingrid procura com a máquina, o “Plano do Pintassilgo”, uma alternativa para o nacionalismo sionista, através do qual vários países atribuem, pequenas partes do seu território, permitindo ao povo Judeu existir como comunidade. Apesar de não evitar a estetização da decadência, aquilo que aqui ressalta é uma implícita teoria da cultura: ao definir-se negativamente face ao que perdeu (no mínimo, a esperança), põe em relevo a espessura do tempo, da história e da civilização. Isto implica, enquanto postura política, o desistir de qualquer desejo de intervenção sobre o tempo e sobre a história. Mais do que o romper do tecido histórico, algures num passado indeterminado, é o distanciamento proporcionado, pela visão do historiador, que fundamenta o cinismo do protagonista. De forma paradoxal, é essa clarividência histórica, o reconhecimento da inutilidade de qualquer gesto, que fundamenta a inocência de afirmar a reserva ou o retiro na floresta como a última fronteira da liberdade. V.A.

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